sexta-feira, 22 de junho de 2012

Se fosse um botequim...


 - Para onde vai?
A pergunta pegou de surpresa. Virou-se e o viu parado no parapeito da porta, encostado. A mão direita levantou os óculos de aros grossos, e a esquerda jazia descansada no bolso do paletó gasto de risca. As calças puídas denunciavam a origem, mas não era no desleixo. O olhar era atento, mas não inquiria. Apenas observava, curioso. Deus dois passos e parou, apontando com o queixo para a mala pequena...
-        Pelo jeito, não muito longe!
Não era um estranho. Mas as vezes era tão impessoal que era como se fosse. Pensou em não responder. Não seria a primeira vez que pensara nisso, mas sem dúvidas seria a primeira vez sem uma resposta.
-        Vou-me embora. Não quero mais ficar aqui...
-        Achei que gostasse do ambiente... Ou são as companhias que não agradam?
-        Acho que... Ambos. Não tenho certeza.
-        Mas tem certeza de que quer ir?
Não houve resposta. A resposta era não.

-        Simplesmente acho que é melhor ir do que ficar. Não há mais motivos para ficar.
-        Talvez. Talvez tenha tanto motivos para ir quanto para ficar.
-        Não vejo motivos para ficar. Vedes?
-        Vejo os meus, por isso ainda estou aqui. Vou esperar que a festa acabe, e que o garçom coloque as cadeiras viradas sobre a mesa. Não quero sair sem ter certeza de que comi, bebi e comemorei com todos que apreciam minha presença.
-        Como sabes que a apreciam?
-        Não sei. Tu não sabes. Não há maneira melhor de saber do que aqui ficar, e ter com eles. Aqueles que me quiserem bem, beberão e darão longas risadas comigo. Compartilharão tristezas e alegrias. E não é assim em todo lugar? Porque aqui haveria de ser diferente?
Baixou o olhar. Um ruído do lado de fora chamou a sua atenção, mas logo voltou os olhos.

-        Não sei, e prefiro não descobrir... Veja, se me perdoa, tenho mesmo de ir...
-        Bebe comigo, antes de partir?
-        Não...
-        Bebes. Não sei dos outros, mas a mim, agrada a tua presença. Senta-te, e tome o cálice. Vamos lembrar dos bons momentos antes de partir...
-        E tu, quando partes?
-        No fim.
-        E quando será o fim?
-        Não sei. E não tenho pressa. Vou apreciar a marcha, o bloco, o samba... Quando o fim chegar, eu saberei. Todos aqui saberão. O momento de partir deve surgir, e não ser criado, alavancado...
Estava ao lado da mesa, já. Soltou um suspiro, revirou os olhos... Mas aceitou. Colocou a pequena mala do lado, e sentou-se de canto, as pernas viradas para a rua, como se estivessem prontas para sair.

-        Gosta daqui?
-        Muito! - Deu um gole grande, e um sonoro 'Ahh' – Em minha opinião, lugar melhor não há!
-        E conhece muitos?
-        Nenhum. Além dessa esquina, e dessa alameda, nunca arredei o pé daqui...
-        Como julga o melhor, se não sabe o que tem além da alameda? E se nunca dobrou a esquina!
-        Meu coração está feliz aqui, e em paz. Tenho amigos, música, comida, aromas... Porque dobraria a alameda?
-        Não sabes o que tem do outro lado! Pode ter muitos outros amigos! E música até a madrugada! Pode haver um grande desfile com plumas e bandas... E tu aqui, a bebericar ouvindo esses sacripantas de botequim...
-        Pode ser. Deve mesmo ser boa a vida longe daqui... Nunca voltaram depois de partir...
Um outro gole e o copo estava no fim.
-        Ninguém?
-        Não. Uns dizem que sim, outros juram. Dizem que vem, voltam... Contam histórias, mandam cartas. Dizem que veem e dão conselhos. Falam como agir por aqui antes de partir, isso e aquilo...
-        E tu, o que acha?
-        Eu? Nem me ocupo disso! Se tenho amigos que partiram, e que façam gosto de me ver, que venham até aqui. Ou que me esperem, que uma hora acaba aqui e logo parto para junto deles também. Como dizia minha avó, se a distância é a mesma...
-        É. Tentas me convencer a não ir, aposto.
-        Gosto da companhia. Companhia boa para rir, comer e beber é coisa rara.
-        A decisão está tomada...
-        Então, entorna teu copo!
-       
Olhou e viu um sorriso. Olhou e viu uma banda marcial, linda... Tocando a sua preferida canção. Quis sorrir, mas lhe faltou a firmeza. Eram gritos de criança na noite, sorridentes. Despreocupadas... Sorriu. Leve.

-        Bebe outra?
-        Se bebo, perco a hora.
-        Não tem hora, ora se não tem! Toda hora pode partir, a favor e contra tua vontade. Mas nem sempre tem hora para a comunhão com um velho companheiro. Uma prosa boa e uma risada é artigo raro, coisa fina. Não há de se desperdiçar não...
-        Bebes comigo até quando?
-        Enquanto fores boa companhia, bebo contigo!
-        Quando embriagar-me, se brigo ou rolo no chão... Por certo que me abandona! Ou se me ataca a moléstia... Enxaqueca ou outra qualquer. Deixa-me na sarjeta e divides a garrafa com outrem, bem sei!
-        E se for o mesmo comigo? Também tenho tripas e ganas, mas aqui bebo contigo. Espero que carregue-me para a casa enquanto tagarelo e canto sem eira nem beira. Espero que medique-me e dê-me água tônica. Não tenho certeza se fará, mas confio. E só.
-        Confias?
-        Sim. Confiança não é uma corrente de puro ferro, como pensam muitos. É um laço de tecido fino. Se afastas um pouco as pontas, o laço se desfaz e então a confiança está perdida. A confiança não é feita para manter junto, preso! É feita para garantir que se está junto, é por vontade. E só!
-        Belas palavras para um ébrio...
-        Aqui, nesse lugar, somos todos ébrios. Toma, bebe hoje. Amanhã decides se partes ou não.
-        Saúde!

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