- Para onde vai?
A pergunta pegou de surpresa. Virou-se e o viu parado no
parapeito da porta, encostado. A mão direita levantou os óculos de aros
grossos, e a esquerda jazia descansada no bolso do paletó gasto de risca. As
calças puídas denunciavam a origem, mas não era no desleixo. O olhar era
atento, mas não inquiria. Apenas observava, curioso. Deus dois passos e parou,
apontando com o queixo para a mala pequena...
-
Pelo jeito, não muito longe!
Não era um estranho. Mas as vezes era tão impessoal que era
como se fosse. Pensou em não responder. Não seria a primeira vez que pensara
nisso, mas sem dúvidas seria a primeira vez sem uma resposta.
-
Vou-me embora. Não quero mais ficar aqui...
-
Achei que gostasse do ambiente... Ou são as
companhias que não agradam?
-
Acho que... Ambos. Não tenho certeza.
-
Mas tem certeza de que quer ir?
Não houve resposta. A resposta era não.
-
Simplesmente acho que é melhor ir do que ficar.
Não há mais motivos para ficar.
-
Talvez. Talvez tenha tanto motivos para ir
quanto para ficar.
-
Não vejo motivos para ficar. Vedes?
-
Vejo os meus, por isso ainda estou aqui. Vou
esperar que a festa acabe, e que o garçom coloque as cadeiras viradas sobre a
mesa. Não quero sair sem ter certeza de que comi, bebi e comemorei com todos
que apreciam minha presença.
-
Como sabes que a apreciam?
-
Não sei. Tu não sabes. Não há maneira melhor de
saber do que aqui ficar, e ter com eles. Aqueles que me quiserem bem, beberão e
darão longas risadas comigo. Compartilharão tristezas e alegrias. E não é assim
em todo lugar? Porque aqui haveria de ser diferente?
Baixou o olhar. Um ruído do lado de fora chamou a sua
atenção, mas logo voltou os olhos.
-
Não sei, e prefiro não descobrir... Veja, se me
perdoa, tenho mesmo de ir...
-
Bebe comigo, antes de partir?
-
Não...
-
Bebes. Não sei dos outros, mas a mim, agrada a
tua presença. Senta-te, e tome o cálice. Vamos lembrar dos bons momentos antes
de partir...
-
E tu, quando partes?
-
No fim.
-
E quando será o fim?
-
Não sei. E não tenho pressa. Vou apreciar a
marcha, o bloco, o samba... Quando o fim chegar, eu saberei. Todos aqui
saberão. O momento de partir deve surgir, e não ser criado, alavancado...
Estava ao lado da mesa, já. Soltou um suspiro, revirou os
olhos... Mas aceitou. Colocou a pequena mala do lado, e sentou-se de canto, as
pernas viradas para a rua, como se estivessem prontas para sair.
-
Gosta daqui?
-
Muito! - Deu um gole grande, e um sonoro 'Ahh' –
Em minha opinião, lugar melhor não há!
-
E conhece muitos?
-
Nenhum. Além dessa esquina, e dessa alameda,
nunca arredei o pé daqui...
-
Como julga o melhor, se não sabe o que tem além
da alameda? E se nunca dobrou a esquina!
-
Meu coração está feliz aqui, e em paz. Tenho
amigos, música, comida, aromas... Porque dobraria a alameda?
-
Não sabes o que tem do outro lado! Pode ter
muitos outros amigos! E música até a madrugada! Pode haver um grande desfile
com plumas e bandas... E tu aqui, a bebericar ouvindo esses sacripantas de
botequim...
-
Pode ser. Deve mesmo ser boa a vida longe
daqui... Nunca voltaram depois de partir...
Um outro gole e o copo estava no fim.
-
Ninguém?
-
Não. Uns dizem que sim, outros juram. Dizem que
vem, voltam... Contam histórias, mandam cartas. Dizem que veem e dão conselhos. Falam como agir por aqui antes de partir, isso e aquilo...
-
E tu, o que acha?
-
Eu? Nem me ocupo disso! Se tenho amigos que
partiram, e que façam gosto de me ver, que venham até aqui. Ou que me esperem,
que uma hora acaba aqui e logo parto para junto deles também. Como dizia minha
avó, se a distância é a mesma...
-
É. Tentas me convencer a não ir, aposto.
-
Gosto da companhia. Companhia boa para rir,
comer e beber é coisa rara.
-
A decisão está tomada...
-
Então, entorna teu copo!
-
…
Olhou e viu um sorriso. Olhou e viu uma banda marcial,
linda... Tocando a sua preferida canção. Quis sorrir, mas lhe faltou a firmeza.
Eram gritos de criança na noite, sorridentes. Despreocupadas... Sorriu. Leve.
-
Bebe outra?
-
Se bebo, perco a hora.
-
Não tem hora, ora se não tem! Toda hora pode
partir, a favor e contra tua vontade. Mas nem sempre tem hora para a comunhão
com um velho companheiro. Uma prosa boa e uma risada é artigo raro, coisa fina.
Não há de se desperdiçar não...
-
Bebes comigo até quando?
-
Enquanto fores boa companhia, bebo contigo!
-
Quando embriagar-me, se brigo ou rolo no chão...
Por certo que me abandona! Ou se me ataca a moléstia... Enxaqueca ou outra
qualquer. Deixa-me na sarjeta e divides a garrafa com outrem, bem sei!
-
E se for o mesmo comigo? Também tenho tripas e
ganas, mas aqui bebo contigo. Espero que carregue-me para a casa enquanto
tagarelo e canto sem eira nem beira. Espero que medique-me e dê-me água tônica.
Não tenho certeza se fará, mas confio. E só.
-
Confias?
-
Sim. Confiança não é uma corrente de puro ferro,
como pensam muitos. É um laço de tecido fino. Se afastas um pouco as pontas, o
laço se desfaz e então a confiança está perdida. A confiança não é feita para
manter junto, preso! É feita para garantir que se está junto, é por vontade. E
só!
-
Belas palavras para um ébrio...
-
Aqui, nesse lugar, somos todos ébrios. Toma,
bebe hoje. Amanhã decides se partes ou não.
-
Saúde!